Ela não era gorda nem magra, bonita nem feia, rica nem pobre, tarada nem santa. Maria, aos 29 anos, era o perfeito exemplo de todas as mulheres do mundo. Sua mãe, descendente de alemães, sempre lhe disse que poderia ser o que quiser na vida. Seu pai, uma mistura de libanês e angolano, queria que ela fosse advogada, assim como ele. Mas ela havia optado pela vida de publicitária descolada e tinha um bom emprego como redatora. Não tinha muitos problemas existenciais, tinha amigos e namorados, apenas se questionava se seus textos vendiam falsas promessas. Porém, um tampinha nas costas parabenizando sua criatividade sempre a colocava nos trilhos da complacência.
Até que um belo dia Maria se apaixonou, amor à primeira vista, alma gêmea. Tudo era cor-de-rosa. E sua vida sexual, pink fluorescente. Eles se atracavam em qualquer lugar, a qualquer hora. Banheiro masculino do cinema, banheiro feminino do night club, cobertura da agência na hora do almoço, bancada de trabalho dele no fim do expediente. O sexo rolava fácil e sem complicações. A alquimia perfeita. Um ano depois resolveram se casar.
Maria não tinha dúvidas sobre essa importante decisão, era o curso natural das coisas. Ela só não queria abdicar do seu nome de solteira, o que simbolizava sua individualidade. Também não abdicaria do edredom lilás com estampa de cerejeiras japonesas que acabara de comprar na MMartan, bem feminino para o novo quarto unissex do casal, mas ela tinha certeza de que o futuro marido não repararia. Então, eles se casaram.
Gravidez
Alguns meses depois do casamento, Maria já não tinha mais dedos para contar as inúmeras cutucadas sobre gravidez que já havia recebido, da mãe, da sogra, da nora, da tia, da amiga, do porteiro e da avó. Mas ela desconversava com um sorriso maroto e dizia que ainda estava na fase de curtir o maridão. Ate que o relógio biológico começou a bater, e forte.
Derrepente bebês começaram a saltar a sua frente, no shopping, no supermercado, na rua. Será que só ela estava notando ou aquilo fazia parte de um novo experimento extraterrestre de repovoamento do planeta. Até suas melhores amigas entraram na onda, uma acabara de ter gêmeos e a outra estava grávida. Ana, uma grande amiga desde a infância, já tinha dois filhos, mas ela há tempos não participava do grupo das mais chegadas, a primeira gravidez logo no final da faculdade, havia mudado o curso da vida da amiga para bem longe e agora elas só se viam em ocasiões muito especiais.
Será que tudo isso era um sinal, será que estava na hora dela ser mãe? Seria muito divertido decorar o quartinho do bebê. Eles estavam bem financeiramente e grana não seria um empecilho. Já ouvira falar sobre a nova lei de Licença Maternidade, que lhe daria cinco meses para ficar com o bebê e depois era só achar um berçário de confiança para voltar ao trabalho. O marido também se entusiasmou com a idéia, seria divertido ensinar um mini Jr. a jogar bola e a surfar. Assim, Maria engravidou.
O primeiro trimestre foi de canseira e sigilo. O segundo, uma delicia. Contou para deus e o mundo, a barriga começou a aparecer e descobriram o sexo da filhota. Também não conseguia resistir às roupinhas miniaturas da Zara e ficou radiante ao descobrir que a C&A tinha uma linha de bebês fofa e baratinha. Até que a velha e experiente amiga Ana voltou à cena. “Acho melhor você trocar metade dessas roupinhas RN e P por M e G, o bebê não vai ter tempo de usar". O bom e velho balde de água fria.
Ana também perguntou se ela teria parto normal ou cesárea. Mas Maria ainda não havia pensado nisso. A sua obstetra também não havia tido a audácia de tocar no assunto, já que prescrever pedidos de ultrassom e analisar a tabelinha de peso era o nível de interação que a renomada médica considerava suficiente.
No final do segundo trimestre, o sexo, que até então fazia parte da rotina do casal, começou a ficar de lado. Maria estava cansada da posição de quatro ou de pé na pia do banheiro. Também já não sentia tesão, era mais para agradar o marido; que por sua vez começou a encanar que iria machucar o bebê. E sem sexo o casal ficou até o final da gravidez.
Parto
Na 36ª semana, com o quartinho pronto, gaveteiro abarrotado, mamadeiras, chupetas e fraldas nos seus devidos lugares, e últimos trabalhos concluídos e aprovados, Maria finalmente se lembrou da velha pergunta. Afinal, a filha nasceria de parto normal ou cesárea? E assim, resolveu pesquisar sobre o assunto.
De 16 mães que conhecia, apenas uma havia tido os três filhos de parto normal, a faxineiras da agência. As outras 15, incluindo sua mãe, obstetra e melhores amigas, fizeram cesárea. E ai ela quis saber o porquê. Quadril estreito, pressão alta, medo da dor, férias do médico, dia do aniversário do pai, melhor para a saúde do bebê, foram algumas das explicações.
Na consulta pré-natal, enquanto ritualisticamente esperava sua vez para ser atendida, com uma hora e meia de atraso, Maria resolveu perguntar para as outras pacientes que aguardavam sobre a opção de parto. Em uníssono responderam: cesárea! Para conhecedir com as férias do marido, ser do signo de leão e depois de uma cesárea, só cesárea disseram.
Enquanto a obstetra ouvia o coração do bebê, Maria disse que gostaria de ter parto normal, o coração acelerou, não do bebê, mas da médica. Tudo bem, mas primeiro ela tinha que entender que nem todas as mulheres eram capazes, que o trabalho de parto doía muito e que os bebês nasciam mais feinhos, quer dizer, amassadinhos.
Entretanto, Maria que às vezes gostava de ir contra a maré, lembrou-se de ter ajudado a dar à luz a gata da avó; de todos os filmes em que as mulheres eram levadas as pressas para o hospital aos berros e pariam lindos bebês. Também tinha ficado fã do programa americano “Babies” e se toda aquela mulherada tinha parto normal, ela também podia.
Até que a 40ª semana chegou e nada de contração, dores e de bolsa arrebentar. E sem mais nem menos Maria saiu do consultório direto para a maternidade. A médica havia decretado estado de cesárea! “Temos que tirar essa menina daí, ela pode passar do ponto”. E de supetão, Maria entrou para mais uma alarmante estatística do país, onde 90 % dos partos realizados no sistema privado de saúde são cesarianas*. Fazer o que, não teve jeito mesmo, foi a maneira de se consolar e suportar a dor da cirurgia.
Pós-parto
Amamentar também não estava sendo fácil, mas isso Maria fazia questão, amamentar sua bichinha. Sua amiga, mãe de gêmeos, não agüentou o tranco, a outra não quis colocar a operação dos seios em risco. Ambas estavam gastando rios de dinheiro com fórmulas que dizem imitar o leite materno. Se é que isso era possível. Uma vez, Maria havia criado a embalagem de uma marca famosa e sem saber o porquê, ficou uma semana deprimida.
Na primeira consulta ginecológica pós-parto, a médica, empolgadíssima, disse que em trinta dias o sexo estaria liberado. Maria tentou esboçar um sorriso, mas ess era a última coisa que passava por sua cabeça. Em contrapartida, ela sabia que o marido já havia começado a contar os dias. Ele já vinha se esfregando com segundas intenções, mas ela tinha várias desculpas para não magoar o marido: ainda faltam quinze dias, dez dias, cinco dias até que no dia H, Maria se trancou no quarto e decretou que não queria ver nem falar com ninguém. Assim passou o dia e a noite, postada na cama a dar de mamar e a cochilar com a sua bezerrinha.
Os dias se passaram e Maria começou a notar que mais nada no mundo atraia seu interesse. A pilha de jornal e revistas intocáveis na poltrona da sala. Em que as manchetes anunciavam um mundo que ela não queria para a sua bonequinha. Já a sua adorada "Vogue" havia atingido o auge da “extraterrealidade”. Pensou em assinar uma dessas revistas sobre mães e bebês, mas já sabia que não teria tempo de ler, era incrível como não tinha tempo para nada. Entre troca de fraldas, mamadas, uma ajeitada na casa e tentativas frustradas de se exercitar, ela só queria saber de colocar o sono em dia e descobrir o que fazer com o bebê assim que a licença maternidade terminasse.
De camisetão e rabo de cavalo, seu novo figurino, às vezes saia para dar um passeio pelo bairro e sempre parava na banca para ver que atriz estava grávida e que cara tinha os bebês dos famosos. Ela se recusava a comprar essas revistas, as de salão de beleza, porque sempre havia tido acesso fácil e gratuito a esse exuberante mundo de fofocas. Porém, desde que sua filhinha nasceu ela não fazia mais a unha, não depilava e muito menos escova no cabelo.
Sexo
Mas entre todas as mudanças em curso no mundo de Maria, o sexo era o que mais lhe entristecia. Nos últimos cinco meses, ela consentia, mas não tinha mais tesão. Tinha a sensação de estar traindo o marido com sua nova paixão, o bebê. Ela tinha certeza de que o amava, talvez ainda mais, mas esse amor não vinha acompanhado de beijo na boca e olhares com segundas intenções. Ela adorava sua mão forte que delicadamente segurava o bebê e os lábios carnudos doados à filha como fotocópia reduzida. Mas todo esse amor se transformava em pavor assim que ele começa a tocar suas costas na cama, beijar seu pescoço na pia da cozinha ou colocar as mesmas mãos fortes em seu peito enquanto assistiam TV, ah, esse ultimo era capaz de fazer Maria saltar de terror.
O que esta acontecendo comigo? Ana, a velha amiga, disse que era para ela não se preocupar, que acontecia com todas. Era a maneira sabia da mãe-natureza de evitar que outro bebê surgisse antes da hora. O problema era que homem nenhum entendia. Cabia as mulheres saber administrar a situação. A amiga foi além e dividiu com ela varias técnicas de dispersão: dor de cabeça, fingir sono profundo durante a melhor cena da novela, ir dormir mais cedo. Mas Maria não achava certo e resolveu ser franca com o marido. Estipulou algumas regras: sexo três vezes por semana e nunca tocar nos peitos, que agora eram exclusivos do bebê. E assim tentou ser sexualmente feliz.
Tinha saudade da sexy Maria de outrora, mas não sentia a mínima falta de sexo. Deseja dormir abraçada com o marido, mas qualquer contato na cama era interpretado como sinal verde, então ela evitava esse conforto. Sabia que dessa maneira o marido era presa fácil para qualquer mocinha atirada. Às vezes, até desejava o pior para ver se assim ele lhe daria paz, mas rapidamente apagava o pensamento, não seria capaz de aturar a dor de uma traição. Era melhor simplesmente seguir as regras.
Um ano se passou. Maria havia voltado ao trabalho, que apesar de aniquilar qualquer tempo dedicado somente a ela, havia lhe devolvido certa sanidade para se relacionar com o mundo. O bebê havia se adaptado bem ao melhor berçário do bairro, que custava a metade do seu salário, mas que prometia introduzir a criança ao inglês e ao francês; tinha somente brinquedos educativos dinamarqueses; além de utilizar técnicas indianas de relaxamento. Ela e o marido também sabiam dividir com igualdade todos os afazeres domésticos. Viajavam para o litoral nos finais de semana prolongados. E tinham um seleto grupo de amigos, todos com filhos pequenos.
Somente uma coisa ainda perturbava a existência de Maria, o sexo. Para o marido a regrinha dos três era eficiente, mas para ela deixava muito a desejar. Até que uma bela noite, após um papai-mamãe rápido, ela sentou-se sozinha em frente à TV. Zapeando pelos canais, um programa sobre sexo lhe atraiu a atenção. Cientistas analisavam as respostas do cérebro ao cheiro, visão, tato de parceiros sexuais e assim procuravam uma resposta para uma vida sexual satisfatória e feliz. Para Maria nada daquilo parecia elucidar o seu problema. Até que um casal beirando aos 50 anos, ambos com satisfação no olhar, deu o seu depoimento.
Olhando diretamente para a câmera, a senhora - mulher, nem bonita nem feia, nem pobre nem rica, nem gorda nem magra, disse a frase que mudaria a vida de Maria. “A sexualidade vem da decisão de se sentir sexual e sensual, esta tudo na cabeça”. Maria desligou a TV, respirou fundo e decidiu que no dia seguinte voltaria para casa com a lingerie mais provocante que encontrasse.
Fim
*Pesquisa realizada pela UNICAMP e divulgada no dia 11 de agosto de 2011